Minha
infância sempre trouxe boas recordações. Lembro com carinho
daqueles tempos de descoberta do mundo, quando minha alma e meu
coração eram um enorme painel solar que absorvia todas as coisas
boas e ruins da atmosfera física e abstrata. Nesses tempos de
introversão, não tinha muitas amizades, mas uma em especial, a qual
cultivo até hoje, foi construída envolta num universo fraternal e
de bons momentos que guardo para sempre na memória.
Crescemos
como todas as crianças normais: Brincávamos de jogar bola,
videogame e brincadeiras de rua que toda criança que anda de pé no
chão adora. Desafiávamos nossos limites morais andando de bicicleta
até os bairros mais afastados de nossas casas sem nossos pais
saberem, simplesmente por achar aquele ato o mais adulto e
independente de todos. Como dois fãs de esporte, topávamos
participar de qualquer equipe esportiva de nossas escolas. Handebol
era uma paixão e não foram poucas as vezes que passávamos as
tardes no quintal da casa de meu amigo atirando insanamente cocos
secos no muro do fundo do pátio com o objetivo de “treinar”
lançamentos. Não chegava a ser uma travessura saudável, mas nos
divertíamos aos montes.
Com
a chegada da adolescência alguns hábitos mudaram. Aliás, alguns
hábitos foram acrescentados pois mesmo entrando na puberdade, nosso
lado travesso nunca nos abandonou. Até hoje nunca nos deixou.
Passamos a frequentar festinhas, ir a clubes de matinê e paquerar, e
como todo adolescente, enfrentamos as temíveis espinhas, é claro,
sem perder o bom humor. Nos orgulhávamos de ostentar um bigode de
leite ridículo por achar aquela postura de garoto jovem de bigode
ultra atraente, mas não sabíamos o quão ridículos éramos.
Tentamos desesperadamente nos relacionar com as garotas, primeiro
com beijos, depois com sexo, mas como não levávamos jeito para a
história acabamos frustrados, pois sempre perdíamos para os garotos
mais ricos, bonitinhos e populares da cidade.
Encaramos
todos os altos da adolescência com bom humor, companheirismo, sem
dar muita bola para os padrões sociais, mas queríamos ser garotos
“normais”, que saíam para as festinhas, beijavam na boca, quem
sabe apertar uns peitinhos no fim da noite e depois voltar felizes
para a casa. Isso aconteceu, mas por muitos anos só em nossos sonhos
e nas conversas infinitas sobre as questões da vida enquanto
jogávamos videogame ou andávamos de bicicleta pela cidade atrás de
latas de cerveja para nossa coleção. Resolvemos entrar para a
academia de musculação, afinal que garotas se interessaria por dois
jovens cheio de espinhas, que andavam de bicicleta, usavam bigode de
leite e ainda por cima eram incrivelmente magros?
A
partir de então criamos nosso próprio ritual pouco convencional
para dois adolescentes. Acordávamos as seis horas da manhã para ir
correndo até a academia que ficava a alguns quilômetros de nossa
casa. Íamos correndo porque acreditávamos que assim nossas coxas
aumentariam de volume muscular. Agora quando paro para pensar nisso
me pergunto onde estávamos com a cabeça ao pensar em fazer isso?
Depois de ficar duas horas internado na academia fazendo mil
exercícios, voltávamos a pé para casa, dando uma parada na padaria
para comprar pão. Competíamos para ver quem conseguia comer mais
daqueles pães, e em dias inspirados cada um conseguia comer até
quatorze deles. Em nossa cabeça louca, isso nos ajudaria a ganhar
peso. Coisas de adolescente com baixa autoestima.
Foi
nesses tempos e nessa atmosfera que mergulhei no mundo da música.
Passei a cabular aulas para tocar violão na cantina da minha escola.
Foi nesses tempos também que nossa amizade se fortaleceu por
definitivo. Foi nesses tempos que uma música em especial embalou
nossos dias e tocávamos repetidamente no microsystem enquanto nos
empanturrávamos de pães. Sua letra marcante contava o cotidiano de
um homem adulto, que havia vencido na vida mas ainda assim não
estava satisfeito, e como um velho resmungão e com um texto ácido
questionava a vida e seus sabores e dessabores. Nos identificávamos
com cada linha daquela canção pois nos sentíamos assim, felizes
mas incomodados com certos espinhos em nossa jornada. Esta canção,
hoje, me causa uma profunda saudade daqueles tempos. Esta canção
foi o hino da vida de dois jovens que compartilhavam e ainda
compartilham de uma amizade sincera. Foi a trilha sonora de um tempo
que nunca mais voltará, mas que guardo com carinho na memória. Já
dizia essa mesma canção que “Eu devia estar contente porque tenho
um emprego, sou um dito cidadão respeitável e ganho quatro mil
cruzeiros por mês”, mas eu quero mais, muito mais da vida, e muito
mais lembranças como essa para guardar comigo. Amizade é um amor
que nunca morre. É a maior riqueza, a mais abundante que podemos
levar desse mundo.
*
Victor Matheus