PEDAÇO DE MIM


Hoje eu acordei com uma sensação estranha. Um sentimento diferente de todos os outros que um dia habitaram meu coração. Olhei para o lado da cama. Havia um espaço vazio. O lençol estava amarrotado. Alguém havia dormido ao meu lado na noite passada. Levei as narinas mais próximo ao lençol. Senti um aroma conhecido. Era teu cheiro. O mesmo cheiro que outrora arrebatara meu peito. O mesmo cheiro que tomara de assalto meus pensamentos, meus desejos, meus sonhos e planos para um futuro a dois. O mesmo de outras vidas. De histórias guardadas no meu inconsciente e congeladas na eternidade. O mesmo cheiro de sempre que se misturava ao meu. O perfume mais nobre de todos. O néctar das rosas adormecidos naquele lugar. Naquele tecido. O cheiro de você.

A sensação da sua presença permanecia ali. Levantei-me devagar da cama. Fitei aquele ambiente por alguns segundos. Os primeiros raios de sol da manhã invadiam aquele lugar especial através dos vitrais da janela. Ouvia o canto dos pássaros. O barulho da água batendo nas pedras numa pequena queda d'água próximo de onde eu estava. Lembrei-me que habitava aquele lugar há algum tempo. Próximo as nuvens. Longe do mundo louco com seus prédios, suas buzinas insanas, o ar pesado e o medo de atravessar a rua. Percebi também um porta retrato pendurado na parede. Me aproximei. Minha respiração era lenta. O corpo completamente leve e relaxado. Os músculos encobertos por tatuagens que agora eram fartas na minha pele e cheia de histórias. Algumas recentes, outras já desbotadas pelo tempo. 
Fitei aquela imagem que revelava quatro rostos felizes, com sorrisos largos, pintados de tinta a água em diversas cores. Um verdadeiro arco-iris. Eram quatro seres em perfeita harmonia. Contemplando a vida. Quatro espíritos compartilhando amor. O amor puro e divinal. O amor em seu mais alto grau de sinceridade. Aqueles quatro sorrindo de uma travessura que somente os mesmos sabiam e não interessava ao mundo. Era o momento deles e para eles. A cumplicidade. Nossas faces ainda não tinham as marcas do tempo que carregamos hoje. Éramos jovens, vigorosos e cheio de sonhos que hoje conquistamos. Teu sorriso brilhante, tua pele alva, os fios de cabelo que outrora eram vermelhos, nessa imagem eram claros, como nos dias que seu mundo voltou para o meu.

Já havia se passado décadas e dezenas de anos bissextos desde o nosso primeiro encontro casual e impessoal através das ondas abstratas do universo cibernético. Ainda contemplava aquela imagem. Eu ali, ao seu lado, compartilhando aquele momento. Sorri discretamente ao perceber naquela imagem os poucos pelos na minha face, dando contraste a farta barba grisalha que ostento hoje. Lembro de ter sonhado um dia estar assim como estou hoje ao me ver no espelho. Sempre gostei de barba. Me lembra a infância. Me lembra meu pai. Me afaga o peito. Me lembra de onde eu vim e o que me tornei hoje... Meus olhos se encheram de água, mas não de tristeza. Uma felicidade indescritível tomou conta do meu peito ao deslizar meus olhos um pouco abaixo do seu colo e o meu. Aqueles dois pequeninos seres lindos. Nossas obras de arte mais importantes e especiais de toda nossa jornada. Partes nossas unidas. Nossas sementes semeadas para o mundo. 
Ambos tinham a mesma cor da tua pele e minhas pintas espalhadas pelos corpos ainda pequeninos. Os olhos cor de amêndoas. Puxadinhos, como os nossos quando buscávamos no horizonte algo para nos distrair. Os cabelos daquela pequena garotinha tinha os fios dourados, lisos. A boquinha de traços finos e rosado. Era linda! Lembrava sua imagem na infância. O pequeno tinha também os cabelos dourados, mas cacheados como os meus. Igual nossa pequena, tinha os lábios rosados, a pele alva. Era poucos anos mais velho que nossa pequenina princesa. O primogênito de nossa prole tinha o olhar firme na imagem. O mesmo olhar que ainda ostenta. Que nos orgulha. Que nos enche de alegria quando vêm até onde estou nesse momento, e sem nenhum receio, apesar de já ser um homem grande, bom pai de família, sucedido, pula na minha cama, me abraça, me beija, olha nos meus olhos e diz para mim o quanto me ama. A recíproca é verdadeira. É parte minha caminhando livre pelo mundo. Não consigo conter, e uma lágrima escorre dos meus olhos enquanto te escrevo nesse instante. Tento disfarçar pois aonde estou há outras pessoas com a cabeça enfiada a pilhas de papel e processos, computador, planilhas. É estranho e surreal ir e voltar no tempo em questão de pensamentos.

Contemplo aquele pedaço do tempo por mais alguns instantes. Respiro fundo. Sinto uma imensa gratidão no meu coração por ter a dádiva de poder existir nesse universo, por tê-la ao meu lado. Por compartilhar por grande parte da minha vida histórias divididas contigo. Por estar aonde estou nesse instante. Por ter conquistados meus sonhos. Escrito livros. Gravado discos. Pintado quadros. Por ter o privilégio de acordar todas as manhãs e sentir que valeu a pena cada dia, cada desafio que surgiu em nossa jornada. Gratidão. É tudo que consigo expressar nesse instante em silêncio, deixando apenas meu coração dizer ao mundo o quanto me sinto feliz.

Não me importo com a pouca roupa que visto. Apenas um samba canção. O clima é agradável. Observo meu corpo já surrado pelo tempo. Ele continua firme apesar das rugas e os cabelos grisalhos. Outro sorriso discreto se revela na minha face. Quantas vezes correndo pelas ruas da vida recebi elogios e críticas das pessoas? Quantas vezes pelas estradas da vida, precisei mostrar o documento para afirmar a idade que tinha apesar de não aparentar? Quantas vezes na vida precisei recomeçar, me reerguer... E tu sempre ao meu lado, com a mão estendida, disposta a me proteger de tudo e de todos... minha fiel companheira... Tinha orgulho de ter chegado a melhor parte da minha vida com saúde, apesar dos excessos, das loucuras, das noites insanas, muitas delas ao seu lado. Não há nenhum arrependimento nisso.

Ouço um barulho em outro cômodo da casa. Abro a porta e saio. O chalé onde habito é lindo. A mata ao redor, os raios invadindo a poupa das árvores, beijando o solo e aquecendo a vida. Olho pela janela ampla e observo dois ipês floridos. Uma rede amarrada a eles, trançada de fibras naturais. Vejo mais adiante um pequeno córrego, de onde vinha o som que ouvira de dentro do quarto. Agora enxergava claramente a água acariciando as pedras. Era música para os meus ouvidos. Depois de tantos anos nos palcos, do barulho insano das guitarras e do público gritando meu corpo não tinha mais sede disso. Agora o som da natureza era tudo que ele pedia. Atravesso o cômodo caminhando sem presa, descalço, pisando no assoalho de tabiques de madeira. Gelado, mas delicioso de se pisar. Caminho até a rede que balança afinada com a brisa leve que acaricia a copa das árvores. Você está deitada nela. Devora um livro calmamente. O título do livro não importa. É tua presença que ainda me arrebata. Que acelera meu coração fazendo os músculos se contraírem. O sangue percorrer mais rápido em minhas veias. Seus cabelos também estão grisalhos. A pele, igualmente a minha, carrega as marcas do tempo, mas ainda assim continua belíssima. As curvas firmes. Ainda desperta em mim o mesmo desejo de décadas atrás. Ainda acende no meu peito a chama da paixão. Desperta a mesma emoção da primeira vez que meu corpo se misturou ao seu... Você usa apenas um blusão de tecido fino e estampado com flores revelando as formas firmes do teu corpo. Tal qual um bom vinho, só melhorou com o tempo. 

Me aproximo discretamente. Você nota minha presença. Não dizemos nenhuma palavra. O silêncio e a cumplicidade de anos de convivência se revelam num diálogo corporal. Teus olhos encontram os meus. Você sorri pra mim. Aquele mesmo sorriso da imagem que a pouco eu contemplei no quarto. Interrompo inesperadamente teu sorriso com um beijo longo e carinhoso. Tua mão acaricia minha nuca, como sempre fez. Meus pêlos do braço arrepiam. Minha mão afaga teu quadril, sentindo teu corpo quente, a pele macia. Afasto alguns centímetros da tua face. Contemplo sua imagem real. Teu sorriso. Olho no fundo dos teus olhos, buscando sua alma... “Bom dia meu bem, já disse que te amo hoje?”... teu sorriso se alarga... “Bom dia meu amor, eu também amo você!”... Você responde e beija meu pescoço... Retorno a ficar em pé e lhe digo “Vou preparar nosso café... A manhã está linda, vamos caminhar um pouco?”. “Meu amor, de onde você ainda tira tanta energia? Não se cansa não?” você responde mantendo a mesma imagem imaculada que eu tanto amo... Me aproximo novamente da sua face, a beijo por um instante e digo “Meu bem, ainda temos muito pra conhecer desse mundo, muito a caminhar juntos... Compartilhamos do mesmo sentimento, que me move todos os dias, que me enche de energia e de vontade de abraçar a vida, de estar ao seu lado”.... “Meu lindo...” Você sorri.

Caminho de volta ao chalé. Você retorna a devorar seu livro... Meus passos são lentos... Paro um instante. Olho para atrás. Vejo você balançando na rede concentrada na leitura... Novamente o sentimento de gratidão toma conta do meu coração... Digo a mim mesmo em pensamento “sou um cara de sorte”. Agradeço em silêncio a vida por ter me destinado a vivê-la ao seu lado... Entro no chalé, vou preparar o nosso café... É fim de semana. Logo os filhos e netos chegarão para nossa alegria...

* Victor Matheus

RECICLANDO IDÉIAS

Quando eu era um jovem movido pelos hormônios, concebia a idéia de paixão totalmente incompatível com a forma que vejo e sinto o mesmo sentimento agora. Tal qual o fogo que se dissipa rápido, meus amores, decepções, feridas, tropeços e recomeços foram intensos, voláteis, e na maioria das vezes descartáveis. Precisei saltar novamente nesse universo da paixão, do amor, para compreender claramente o passado e as cicatrizes que carrego hoje.

Com a caminhada se alongando por mais de duas décadas e meia, hoje posso contemplar com segurança e serenidade todas as fases da vida sem ansiedades, sem medos, sem receio algum de pular no abismo profundo e surpreendente que é o nosso universo interior. Venho descobrindo, ou melhor, redescobrindo emoções adormecidas pelo tempo por escolha própria, por até então acreditar que o racional deveria comandar o horizonte da minha jornada... Então como um cometa, um raio de luz emitido pelo universo com endereço e hora certa, a paixão me arrebatou novamente, e me fez ver e sentir mais uma vez o sabor, as cores, a delícia que é poder amar de novo.

As velhas idéias, os medos bobos, e toda a insegurança simplesmente se extinguiram. Outras estão se reciclando, tomando novas formas mais completas e essenciais. É preciso provar desse “veneno” para compreender o que compartilho nestas poucas linhas. É preciso ir além, saborear os dois lados da ponta da lança para compreender finalmente que não precisamos ir a guerra para alcançar nossos sonhos, basta cultivar o jardim, abrir a vela do nosso barco e seguir o tempo, que o porto chega logo até nós.

Eu sempre acreditei no poder das palavras, nas forças físicas, químicas, espirituais, cósmicas e casuais do universo agindo ao seu favor quando você decide abraçar o mundo e gritar para todos ouvirem que teu espírito está sorrindo. Para alguns, é o que chamam de Felicidade, para mim também é. Tão simples como sorrir ao ver uma criança se lambuzar com sorvete, da travessura feita escondida dos pais.

Certo homem famoso disse que “a morte é a maior dádiva da vida, pois tira o velho para dar lugar ao novo”. Eu morri exatamente há alguns dias atrás. O homem puramente racional. Deixei para a história e os livros aquele ser. Desse ponto em diante, reciclo as idéias, me refaço e reconstruo de novo, para seguir uma nova jornada. Não sou mais um único ser habitando esse universo. Enfim encontrei mãos para unir as minhas e construir um futuro. Agora me divido em outras partes. Uma aqui, dentro do meu peito, e outra guardada e protegida pelo meu bem querer... Sou privilegiado por ter esta dádiva dada pela vida de me permitir amar outra vez. Quantas pessoas tem essa honra? Quantas pessoas merecem gozar desse sentimento? É por isso que nunca me canso de compartilhar o mantra “abraça o mundo, que o mundo te abraça”. A felicidade está bem a nossa frente. Basta abrirmos o coração para ela entrar.

* Victor Matheus

CHUTE A BUNDA DA INVEJA

São poucas, de verdade, as coisas, fatos e atitudes que me incomodam na vida. Já faz um bom tempo que não cultivo coisas ruins no meu dia a dia, mas vez ou outra me aparece situações que antes me tiravam o equilíbrio, porém hoje assimilo com sabedoria e tranqüilidade. O tempo vai nos moldando para nos tornarmos mais resistentes aos percalços da nossa jornada.

É muito comum ver as pessoas ascendendo na vida, seja pessoalmente, profissionalmente, materialmente ou espiritualmente. Em contra partida, poucos são os verdadeiros corações que aplaudem o crescimento do próximo. A maioria das pessoas insistem, sempre que podem, em nos puxar para baixo. Isso é um fato constante: Quantas vezes você já não ouviu que certa pessoa comprou um carro melhor; está mais magro; está namorando; está sorrindo? E imediatamente você ouve outro alguém tecendo comentários desnecessários, simplesmente por pura inveja. Pô! Isso as vezes enche o saco! Que fique calado, que não se meta na vida alheia, olhe para o próprio umbigo. Faz bem pra saúde.

É claro que há a chamada “inveja branca” da qual eu cultivo aos montes no meu cotidiano, porque faz bem não só para mim, mas também com quem compartilho. Adoro ouvir que um amigo, ou mesmo uma pessoa que não tenho muito contato mas sempre vejo com bons olhos, com apreço, respeito e admiração, vencendo os obstáculos da vida. As vezes sentimos uma inveja, mas não negativa; é um sentimento difícil de descrever; é como se a conquista do próximo nos estimulasse a querer crescer mais. Não para competir ou ser melhor, apenas para dar o próximo passo. Essa é a grande diferença. Podemos sim, ter inveja, mas que esse sentimento se limite a admiração, a inspiração, e não a focar energias ruins.

Infelizmente não podemos mudar o mundo, mas o nosso mundo, o que está próximo a cada um de nós sim. Basta querer. Não permita que pessoas de coração ruim habitem seu cotidiano. Faça sua parte, tente mostrar a face boa da vida, compartilhar bons pensamentos e energias positivas, mas se ainda assim não funcionar, simplesmente se afaste. Não brigue. Não ofenda. Não despreze. Apenas se distancie daquilo que não te faz bem. Não cultive nenhum sentimento ruim. Deixe que o tempo moldará e transformará a vida daqueles que ainda não sabem que cultivar sentimentos ruins no coração só faz mal aos próprios. Em outras palavras, chute a bunda da inveja, e abrace os elogios. Compartilhe sorrisos. Tua vida será mais colorida e harmoniosa, como crianças se divertindo num parque de diversão. Comece agora, enquanto há tempo.

* Victor Matheus